“As entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm representatividade para representar seus filiados judicialmente ou extrajudicialmente”
REPRESENTAÇÃO ASSOCIATIVA: A ASSOCIAÇÃO EM DEFESA DE SEUS MEMBROS
O direito de representação associativa ou, mais especificamente, o direito de uma associação representar judicialmente ou extrajudicialmente seus associados é assegurado pelo Inciso XXI do artigo 5º da Constituição de 1988.
O Inciso XXI, ao lado de outros quatro incisos – Inciso XVII (Liberdade de Associação), do Inciso XVIII (Livre Constituição de Associações), do Inciso XIX (Dissolução de Associações) e do Inciso XX (Direito de Não se Associar) – para os quais temos posts específicos, constituiu o arcabouço que trata sobre Liberdade de Associação no artigo 5º da Constituição.
Mas o que significa e qual a importância de uma Associação poder representar seus associados? Quais os critérios e as polêmicas em torno disso? É para explicar isso e muito mais que fizemos este texto para você!
Para conhecer os outros direitos assegurados pela nossa Constituição, confira a página do Artigo Quinto, um projeto desenvolvido pelo Instituto Mattos Filho e pelo Politize! para esclarecer o artigo 5º, um dos mais importantes da Constituição de 1988. Nele estão previstos os direitos fundamentais, com objetivo de assegurar uma vida digna, livre e igualitária a todos os cidadãos do país.
Se preferir, ouça em conteúdo em forma de podcast:
O DIREITO À REPRESENTAÇÃO ASSOCIATIVA
O artigo 5º, em seu Inciso XXI, afirma que:
“XXI – As entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm representatividade para representar seus filiados judicialmente ou extrajudicialmente”
Antes de prosseguir, é preciso ficar claro para você o que é uma associação. Como trouxemos nos outros quatro incisos que tratam sobre associações, uma associação é entendida como uma pessoa jurídica, sem fins lucrativos, composta por um grupo de pessoas que se reúne para atuar e desenvolver atividades em prol da comunidade.
Desse modo, alguns exemplos são associações de moradores, associações de bairro, associações de pais e mestres, associações filantrópicas, associações de trabalhadores, entre outras.
É importante lembrar que essa é a definição mais estrita do termo “associação”. Para André Camargo, na obra Aspectos Gerais da Liberdade de Associação no Brasil, de 2014, em sentido amplo, “associação” se refere a qualquer associação de pessoas, mesmo com fins lucrativos. Mas, em sentido estrito, somente àquelas sem fins lucrativos.
É justamente esse sentido estrito que está caracterizado no artigo 53 do Código Civil, de 2002, segundo o qual associações constituem-se “pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos” e que “Não há, entre os associados, direitos e obrigações recíprocos”, ou seja, os associados só tem direitos e obrigações frente a associação e não frente a seus membros.
Agora que você já lembrou o que é uma associação, fica mais fácil compreender o significado do inciso XXI. Nele está prevista a possibilidade de representação associativa, ou seja, de uma associação representar seus membros associados tanto em questões judiciais (aquelas levadas a algum tribunal ou autoridade de justiça) quanto em questões extrajudiciais (que não são levadas à justiça, mas mediadas para buscar soluções conciliatórias ou amigáveis).
Na prática, o inciso XXI dá legitimidade para a associação. Dessa forma, ela pode, em nome próprio, defender interesses coletivos (interesses do grupo como um todo) e mesmo interesses individuais dos associados.
Um exemplo seria uma empresa que fornece más condições de trabalho a seus trabalhadores. A associação sindical que represente esses trabalhadores poderia, em nome deles, entrar com uma ação judicial ou negociar melhores condições com a empresa. Isso evita que todos eles tenham que realizar esse processo individualmente e ainda garante maior força aos trabalhadores do que eles teriam individualmente.
Para que a representação possa acontecer, no entanto, como você deve ter notado no texto do inciso XXI, existe um fator fundamental: a autorização dos associados para que a associação os represente. Isso quer dizer que a associação não pode decidir por si só entrar com uma ação em nome dos associados, utilizando-se, com isso, do peso que carrega.
Uma associação de moradores de um bairro populoso, por exemplo, não poderia entrar com uma ação contra uma obra da prefeitura no bairro sem que seus moradores autorizem a ação.
Mas como deve ser essa autorização? E se uma associação consegue uma vitória judicial, quem é afetado por ela? Esses foram alguns dos temas de que tratou o Supremo Tribunal Federal (STF)
O julgamento do RE 573.232/2014
Em 2014, coube ao Supremo Tribunal Federal (STF) julgar o Recurso Extraordinário 573.232, levantado pela União.
Conforme nota do STF, ele surgiu por conta de a União ser contrária a uma decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) que “estendeu a todos os associados da Associação Catarinense do Ministério Público (ACMP) o direito de executar uma decisão que garantiu correção de 11, 98% sobre a gratificação paga aos promotores eleitorais, retroativamente a março de 2014”.
Entendia-se, com isso, que a presença de uma cláusula que autorize a representação associativa no Estatuto da associação seria suficiente para garantir que todos pudessem ser representados por ela. Dessa forma, todos poderiam se beneficiar da decisão judicial. No caso da ACMP, isso significaria que todos os promotores eleitorais poderiam se beneficiar com a correção de 11, 98%.
No entendimento da maioria do STF, no entanto, embora a correção estivesse estendida pelo acórdão a todos os promotores eleitorais da ACMP, a ação da qual se tirou essa decisão foi proposta em nome de associados que deram suas autorizações individuais expressas. Logo, a sentença também se refere a eles. Dessa forma, os associados que não deram autorizações individuais não poderiam ser representados.
Na conclusão do então ministro Teori Zavascki isso fica bem claro. Para ele, a própria ACMP entendia que:
“A simples previsão estatutária seria insuficiente para legitimar a associação, razão pela qual ela própria [a associação] tomou o cuidado de munir-se de autorizações individuais”
Assim, o STF entendeu que a decisão do TRF – 4 só poderia se aplicar aos associados que deram autorização individual para serem representados. Dali para frente a jurisprudência (adaptação das normas a situações reais) sobre representação associativa entende que um estatuto não é suficiente para garantir representatividade e é indispensável a autorização dos associados que queiram ser representados, seja individualmente, ou através de uma assembleia dentro da associação, registrada em ata.
O julgamento do RE 612.043/2017
Em outra decisão do STF, em 2017, em torno de outro Recurso Extraordinário, dessa vez o RE 612.043, tratando da abrangência (alcance) das decisões judiciais em ações de representação associativa, o Supremo entendeu que, para que um associado se beneficie de uma decisão judicial, é preciso que:
(i) o indivíduo tenha se associado à associação antes de ação ser promovida (ou seja, se um tribunal decidir por uma indenização, por exemplo, e uma pessoa se associar no meio da ação, ela não pode receber essa indenização)
(ii) o indivíduo seja residente na jurisdição do órgão julgador (um indivíduo que more no Amazonas não pode se beneficiar de uma decisão promovida e julgada por uma associação e tribunal do Paraná, por exemplo)
Agora que você entendeu melhor como funciona o inciso XXI, que tal entender quando ele surgiu no Brasil?
A HISTÓRIA DO DIREITO DE REPRESENTAÇÃO ASSOCIATIVA
Assim como o direito de não se associar, tratado no inciso XX, o direito de representação associativa é recente na jurisdição brasileira. Foi só com a Constituição de 1988, a Constituição Cidadã, que ele passou a ser definitivamente considerado.
Se considerarmos que o direito de associar-se livremente está presente desde a Constituição de 1891, a primeira Constituição republicana (em seu artigo 72, § 8º), esse caráter recente fica ainda mais evidente. Enquanto a liberdade de associação tem 128 anos no Brasil, o direito de representação associativa tem apenas 31.
Nessa linha, o direito de representação associativa foi fruto de um longo processo de avanços na liberdade de associação. As Constituições de 1934, 1937 e 1946, por exemplo, deram passos importantes ao impedir a dissolução compulsória (obrigatória) de associações. A partir delas, determinou-se que as associações só podem ser dissolvidas a partir de uma decisão judicial.
A Constituição de 1988, por sua vez, além de manter essas garantias e alargar o teor da liberdade da associação, impedindo interferência estatal e reforçando que a dissolução compulsória só pode se dar com uma decisão judicial com trânsito em julgado (na qual não há mais possibilidades de recorrer), trouxe importantes novidades.
A novidade aqui tratada, do inciso XXI, como te dissemos, dá as associações a permissão para atuar na proteção dos interesses de seus associados. Ao sustentá-la, a Constituição de 1988 consolidou uma previsão da Lei de Ação Civil Pública (7.347/85), datada 3 anos antes. O artigo 5º da lei prevê que associações com mais de um ano de existência têm legitimidade para propor ações.
Dessa forma, o inciso XXI foi um reconhecimento claro dos direitos coletivos (de uma categoria específica, como uma associação de classe) e dos direitos difusos (diluídos entre vários indivíduos, como direitos de crianças e adolescentes) presentes nas associações e reforçou um de seus pilares de agrupamento de interesses comuns.
E QUAL A RELEVÂNCIA DA REPRESENTAÇÃO ASSOCIATIVA?
Conforme Luis Eduardo Regules, na obra Perfil Constitucional do Direito à Livre Associação (1998) traz, além de ser um componente da liberdade de associação, a representação associativa é importante por fornecer um meio para a defesa de outros direitos e interesses. Ela permite que um único ente (a associação) possa atuar na defesa de uma comunidade inteira (seus membros).
A ideia, com isso, é a de garantir que outros direitos constitucionais dos membros da associação sejam efetivos. Pensando em termos práticos, uma associação tem mais peso em uma mesa de negociação do que um indivíduo isoladamente. Assim, permitir que a associação represente o grupo aumenta o equilíbrio entre as partes. Por exemplo, uma associação de moradores entrar com uma ação contra uma prefeitura por alguma questão do bairro é mais efetivo que um morador fazer isso por si só.
Da mesma forma, permitir a representatividade associativa é relevante por gerar economia processual – ou seja, seguindo no mesmo exemplo acima, ao invés de todos os moradores do bairro entrarem com uma ação contra prefeitura, apenas a associação entra, gerando melhor aproveitamento de recursos.
Evita-se, também, que sejam tomadas decisões diferentes entre as ações dos moradores. Se, para o mesmo caso, tivéssemos uma decisão favorável a um morador em uma ação individual e outra favorável à prefeitura em outra ação individual, isso poderia gerar problemas de jurisprudência. No caso de a ação ser proposta pela associação, temos apenas uma decisão, em uniformidade jurisprudencial.
São vários os exemplos que demonstram a relevância da representação associativa. Em um deles, no âmbito do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), no caso AR 497/BA de 1998, a Fundação de Assistência Social à Comunidade de Pescadores recebeu autorização para defender seus membros, em meio à construção de uma fábrica de celulose que degradaria o ambiente em que viva a comunidade, mesmo defesa do meio ambiente não estando expressamente presente no estatuto da associação. Na ausência da associação, seria muito difícil os pescadores terem algum impacto na discussão.
Apesar da relevância, contudo, o direito previsto no inciso XXI não escapa de polêmicas.
AS POLÊMICAS EM TORNO DA REPRESENTAÇÃO ASSOCIATIVA
Atualmente, a grande polêmica em torno do direito de representação associativa está na discordância sobre como deve ser a autorização expressa dada pelos associados para que a associação possa representá-los.
Como você deve lembrar, o julgamento Recurso Extraordinário 573.232 , por parte do STF, determinou que para que os associados possam ser representados pela associação, existem duas possibilidades. A primeira delas é a autorização individual, ou seja, cada associado fornecer um documento autorizando que a associação o represente. A outra possibilidade é por meio da decisão de uma assembleia, registrada em ata com o nome dos que nela participaram.
Essa percepção do STF, contudo, está longe de ser uma unanimidade. Existem aqueles que acreditam que a presença de uma cláusula em estatuto seria suficiente para garantir a autorização para que a associação represente seus associados.
Um nome importante nesse sentido é Camilo Zufelato, professor da USP e autor da obra “Atuação das Associações no Processo Coletivo e tentativa de desfazimento de um grave mal-entendido na jurisprudência do STF e STJ: ainda o tema dos limites subjetivos e da coisa julgada”, de 2017.
Na obra, ele entende que a decisão do STF no julgamento do RE 573.232 prejudica o próprio sentido coletivo das associações, tornando-as mais individualizadas. Nas palavras dele:
“a exigência de autorização transforma o processo coletivo em verdadeiro processo individual […] A nova jurisprudência do STF está promovendo uma conversão de um processo coletivo em processo individual, por meio de exigência de autorizações individuais, que inviabiliza um verdadeiro tratamento coletivo da matéria discutida”.
Nesse sentido, ele tende a concordar com a interpretação que o STF dava para a representação associativa antes de 2014. Essa interpretação era baseada no julgamento da Ação Ordinária 152, em 2000. Nele, entendeu-se que a autorização dos estatutos, assim como a da assembleia-geral, seria suficiente para garantir a representação associativa. Não se falava, portanto, em autorização individual, mas, pelo contrário, tal autorização era vista como pouco eficiente. Nas palavras Ministro Sidney Sanches, na época:
“as entidades associativas recebem autorização dos estatutos ou da assembleia-geral. Não é possível exigir autorização de cada um, individualmente, porque, nesse caso, a própria finalidade da associação se esvaziaria”.
De uma forma ou de outra, contudo, a decisão do STF no RE 573.232 é a válida para a jurisprudência do momento. Ali, o STF priorizou o trecho “quando expressamente autorizadas” do Inciso XXI. Assim, por mais que existam aqueles que discordem, hoje, o estatuto não é suficiente para que a associação tenha o direito de representar um indivíduo. É preciso que os associados demonstrem claramente, em cada ação, que querem ser representados.
A ASSOCIAÇÃO EM DEFESA DOS INDIVÍDUOS
Com esse inciso, portanto, fechamos os 5 incisos que tratam sobre a liberdade de associação, do inciso XVII ao inciso XXI.
Como você pode perceber, o inciso XXI carrega um alto grau de relevância, pois dá legitimidade para a atuação das organizações em defesa de seus membros, reforçando com isso, uma das razões de ser de uma associação: representar interesses coletivos.
Justamente por essa relevância, é difícil atingir um consenso sobre como essa representação deve se dar, na prática. As decisões do STF que trouxemos para você dão o norte ao direito, no momento, mas não encerram seus debates e não é impossível que, nos próximos anos, o entendimento sobre representação associativa sofra novas reviravoltas.
Gostou desse conteúdo? Para conhecer outras liberdades e direitos garantidos na Constituição, visite o site do projeto Artigo 5º.
Sobre os autores:
Laura de Ávila Degasperi
Advogada de Societário
Danniel Figueiredo
Membro da equipe de Conteúdo do Politize!.
Fontes:
Migalhas – A postulação em juízo por entidades associativas
Conteúdo jurídico: considerações sobre a atuação das associações em juízo
Conjur: a associação deve ter autorização para defender seus membros
Jota: o STF e ações coletivas de associações
Aspectos Gerais da Liberdade de Associação no Brasil – André Camargo – 2014
Perfil Constitucional do Direito à Livre Associação – Luis Eduardo Regules -1998
Atuação das Associações no Processo Coletivo e tentativa de desfazimento de um grave mal-entendido na jurisprudência do STF e STJ: ainda o tema dos limites subjetivos e da coisa julgada – Camilo Zufelato – 2017
Recurso Extraordinário 573.232